sexta-feira, 13 de março de 2020

O que explica a mudança de tom de Trump sobre o coronavírus

Em pronunciamento na quarta-feira, o presidente americano Donald Trump expressou uma mudança de posicionamento quanto à gravidade de pandemia de coronavírus
© REUTERS/Tom Brenner Em pronunciamento na quarta-feira, o presidente americano Donald Trump expressou uma mudança de posicionamento quanto à gravidade de pandemia de coronavírus

Depois de semanas minimizando a gravidade do novo coronavírus, o presidente americano, Donald Trump, mudou de tom na noite de quarta-feira, em um pronunciamento à nação em que anunciou a suspensão de viagens da Europa para os Estados Unidos por 30 dias a partir desta sexta-feira, com exceção feita às partidas do Reino Unido.
Trump também recomendou que americanos idosos evitem multidões e falou sobre como o governo federal está atuando em conjunto com comunidades afetadas para orientar sobre fechamento de escolas e outras medidas.
Nas últimas semanas, o presidente americano havia sugerido várias vezes que a preocupação com o coronavírus era exagerada e que o número de casos no país iria diminuir. Ele chegou a comparar o vírus a uma gripe comum, mesmo à medida que autoridades de saúde de seu próprio governo alertavam sobre a gravidade da epidemia.
A mudança de tom veio em um momento em que a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou uma pandemia e os Estados Unidos já registram mais de 1,6 mil casos confirmados da covid-19 (a doença provocada pelo novo coronavírus) em 45 Estados e no Distrito de Columbia (onde fica a capital, Washington), e 40 mortes, o que tem provocado o cancelamento de inúmeros eventos públicos em todo o país.
Também ocorre em meio ao alarme nos mercados financeiros, com as bolsas de valores despencando e economistas alertando sobre o risco de recessão, a poucos meses da eleição presidencial de novembro, quando Trump tentará se reeleger.
Passageira com máscara em Virgínia, EUA; país já registra mais de 1,6 mil casos confirmados e 40 mortes por covid-19© ANDREW CABALLERO-REYNOLDS/AFP via Getty Images Passageira com máscara em Virgínia, EUA; país já registra mais de 1,6 mil casos confirmados e 40 mortes por covid-19
"Foi uma mudança marcante de tom em comparação com o que o presidente vinha dizendo nas duas semanas anteriores", diz à BBC News Brasil o cientista político Jonathan Hanson, da Universidade de Michigan.
Para Hanson, o pronunciamento pareceu indicar um esforço do governo de reagir a algo que havia subestimado anteriormente.
"Se a epidemia crescer muito rapidamente, é possível que não tenhamos capacidade de lidar com isso no sistema hospitalar", observa. "Há potencial para consequências políticas muito graves para o presidente."
O cientista político Gregory Wawro, professor da Columbia University, em Nova York, também afirma ter percebido uma mudança de tom na resposta de Trump à crise provocada pelo coronavírus.
"Acho que há a aceitação da realidade de que isso não é algo que está contido e que os Estados Unidos estão atrás em termos de resposta", diz Wawro à BBC News Brasil.

Resposta inicial e críticas

Durante seu pronunciamento de 10 minutos, proferido do Salão Oval da Casa Branca e transmitido pelas redes de TV em horário nobre, Trump se referiu ao novo coronavírus como "um vírus estrangeiro", ressaltou que "começou na China" e disse que foi "semeado" nos Estados Unidos por viajantes da Europa.
O pronunciamento continha erros, que tiveram de ser corrigidos posteriormente pela Casa Branca. Ao contrário do que Trump afirmou, a restrição é só para estrangeiros e não se aplica a cidadãos americanos, seus familiares e residentes permanentes. Apenas o trânsito de pessoas está proibido, e não de mercadorias, como afirmado inicialmente por Trump.
O presidente criticou a União Europeia por não ter adotado as mesmas precauções que seu governo. No fim de janeiro, Trump anunciou que estrangeiros que haviam visitado a China recentemente não entrariam nos Estados Unidos e que os viajantes americanos seriam submetidos a quarentena. Posteriormente, a restrição passou a incluir outros países com alto número de casos.
A restrição inicial foi elogiada na época por autoridades de saúde pública, segundo as quais a medida permitiu aos Estados Unidos reduzir a velocidade da propagação do novo coronavírus e ganhar tempo para preparar a resposta do país. No entanto, o governo foi criticado por desperdiçar esse tempo extra com problemas em sua resposta.
Fala de Trump sobre coronavírus durou cerca de dez minutos e foi transmitida na TV em horário nobre© MICHAEL REYNOLDS/EPA Fala de Trump sobre coronavírus durou cerca de dez minutos e foi transmitida na TV em horário nobre
Durante semanas, apenas o laboratório na sede do CDC (Centros de Controle e Prevenção de Doenças, agência de pesquisa em saúde pública ligada ao Departamento de Saúde), em Atlanta, podia aplicar testes para diagnosticar a doença. Os kits de diagnóstico iniciais tinham falhas e apresentavam resultados inconclusivos. A distribuição de um novo kit levou semanas, período em que laboratórios locais e estaduais não podiam fazer os testes.
Além disso, havia um critério considerado muito rígido para decidir quem poderia ser testado — somente pessoas que haviam viajado para a China ou tido contato com alguém infectado. Todos esses problemas limitaram inicialmente o número de americanos com acesso ao teste, gerando dúvidas sobre o número real de infectados.
Trump várias vezes elogiou sua própria resposta à epidemia. Em alguns comícios, o presidente chegou a relacionar o (então) baixo número de casos no país a medidas duras de imigração adotadas por seu governo e à promessa de construir um muro na fronteira com o México.
Mas especialistas afirmam que a nova restrição — desta vez a passageiros vindos da Europa —, quando o vírus já está presente em pelo menos 45 dos 50 Estados americanos, terá efeito reduzido para limitar o avanço nos Estados Unidos.
"Parece que o foco em restrição de viagens é uma maneira de fazer com que o problema pareça ser de origem externa", observa Hanson.
"Mesmo na retórica de pessoas ligadas ao presidente, há (a descrição do coronavírus como) o vírus de Wuhan (em referência à cidade chinesa onde a doença foi identificada inicialmente), o vírus chinês. Parece haver motivação política nisso, que é a de dar a ideia de que os Estados Unidos estariam bem se conseguissem manter os estrangeiros do lado de fora."

Cancelamentos e licença médica

O avanço do número de casos nos Estados Unidos provocou o cancelamento de diversos eventos sociais, culturais, esportivos e políticos nos últimos dias. Várias escolas e universidades estão fechadas, algumas com aulas pela internet. Igrejas estão pedindo que os fiéis fiquem em casa. Diversos festivais de música e artes foram cancelados ou adiados. Hospitais e instituições que tratam de pacientes idosos estão restringindo visitas.
Na quarta-feira, a NBA, liga de basquete profissional do país, suspendeu o restante da temporada depois que um jogador do Utah Jazz foi diagnosticado com covid-19. Um dia depois de dizer que seus torneios seriam mantidos, mas sem a presença de público, a NCAA (Associação Atlética Universitária Nacional) também anunciou na quinta o cancelamento do March Madness, principal torneio de basquete universitário.
Ainda nesta quinta, a Major League Baseball (MLB) anunciou que a temporada de beisebol profissional, programada para começar em 26 de março, terá seu início adiado em pelo menos duas semanas. A NHL (Liga Nacional de Hóquei no Gelo) também suspendeu sua temporada.
O Oracle Park, onde joga o San Francisco Giants; várias ligas esportivas dos EUA cancelaram torneios© Ezra Shaw/Getty Images O Oracle Park, onde joga o San Francisco Giants; várias ligas esportivas dos EUA cancelaram torneios
Diante da doença, empresas em todo o país estão recomendando que seus funcionários trabalhem de casa, para evitar riscos de propagar o vírus. O CDC já vem recomendando que pessoas doentes fiquem em casa, mas especialistas temem que a falta de uma lei federal nos Estados Unidos garantindo licença médica remunerada torne impossível para muitos trabalhadores seguir essas recomendações e acabe agravando a epidemia.
Apenas 12 dos 50 Estados americanos e o Distrito de Columbia têm leis que obrigam empregadores a oferecer licença médica. No restante do país, não há lei local, estadual ou federal que obrigue todos os empregadores a oferecer licença médica, e a decisão cabe às empresas.
Segundo o Departamento de Trabalho dos Estados Unidos, um quarto dos trabalhadores em todo o país não têm direito à licença médica remunerada. Também não há lei federal que proteja funcionário de ser demitido se faltar ao trabalho, o que faz com que muitos acabem trabalhando doentes, com medo de ficar sem salário ou mesmo perder o emprego.
Dados do Ministério do Trabalho indicam que o percentual de trabalhadores sem licença médica é maior entre funcionários do comércio e do setor de alimentação e na economia informal. Esses mesmos trabalhadores são os que costumam ter mais contato com o público.
Além disso, especialistas em saúde pública também temem que o combate ao coronavírus seja prejudicado pelo fato de que mais de 27 milhões de pessoas nos Estados Unidos não têm seguro de saúde, segundo dados do censo americano, e o país não oferece um sistema de saúde universal gratuita. Muitos americanos afirmam evitar ir ao médico por não terem como pagar.
Na quinta-feira, a discussão sobre licença médica gerou conflito entre legisladores democratas e republicanos no Congresso, que tentam chegar a um acordo para aprovar um pacote de estímulo para atenuar o impacto econômico do coronavírus.
A proposta inclui ampliar programas de assistência alimentar e contra desemprego, entre uma série de medidas temporárias. Mas também incluía a oferta de licença médica remunerada de foram permanente, e não apenas durante a crise.
Essa proposta foi rejeitada por republicanos na Câmara dos Representantes (equivalente à Câmara Federal), que acusaram os democratas de usar a crise para tentar aprovar medidas que não teriam chance em outro momento. O Partido Republicano e o presidente Trump defendem cortes de impostos para que os empregadores possam cobrir os gastos temporários com licença médica aos funcionários durante a epidemia.

Campanha

O coronavírus também está afetando a campanha eleitoral americana. Na terça-feira, os dois pré-candidatos democratas, Joe Biden e Bernie Sanders, cancelaram comícios por causa do coronavírus. Eventos para arrecadar fundos para as campanhas também já haviam sido cancelados no início da semana.
Na noite de quarta, após o pronunciamento de Trump, a Casa Branca anunciou o cancelamento de uma viagem do presidente a Nevada e Colorado programada para esta semana.
Analistas afirmam que o impacto do coronavírus pode prejudicar os esforços de Trump para se reeleger, já que um dos pontos fortes da campanha do presidente era o bom desempenho da economia americana, que agora está em risco.
"O colapso dos mercados financeiros que vimos na última semana coloca em risco o argumento mais forte de Trump para sua reeleição, que é a economia", ressalta Hanson.
Além disso, os resultados das primárias realizadas neste mês indicam que o democrata escolhido para disputar a eleição geral contra Trump pode ser Biden. Muitos analistas consideram o moderado Biden um candidato mais forte contra Trump do que Sanders, que se declara como socialista e tem uma plataforma considerada muito à esquerda por parte dos americanos. Segundo analistas, Biden poderia conquistar votos de republicanos insatisfeitos com Trump.
Mas Hanson e Wawro ressaltam que ainda é muito cedo para saber que impacto o coronavírus e os riscos à economia terão nas eleições de novembro.
"Modelos estatísticos que usamos quando tentamos entender o papel da economia em eleições sugerem que, se houver recessão, provavelmente está vindo muito tarde no ciclo eleitoral para ter grande impacto", destaca Wawro.
"Mas estamos em território desconhecido. Um declínio econômico rápido, contínuo declínio nas bolsas de valores, podem ter impacto dramático", observa. "Se o coronavírus não for contido, se a taxa de contaminação permanecer alta, se ocorrer algo como o que está ocorrendo na Itália, com altas taxas de mortalidade, isso será a questão a que (os eleitores) estarão prestando atenção (e não a economia)."
BBC News

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